Lindinha
Era à saída da escola.
O senhor Peixoto, farto bigode retorcido, cabelo curto, empinado, a lembrar monumental pincel que o velho Amâncio, sábado sim, sábado não, aparava com os cuidados e finezas que lhe merecia a pessoa do professor régio, e a paga dobrada que dele recebia - dois alqueires de milho cada ano - naquele seu ar importante e trejeito que a canalha bem conhecia e ansiava, dava as últimas ordens do dia:
Os das primeiras letras vão saindo. Tu, João Laré, traz cá o paleógrafo que está na mesa grande. E vós, arrumai as penas. Amanhã continuamos.
Como lhe era agora gostoso ouvir o mestre régio, após um dia de cansaço e sofrimento. Num ai se pisgavam escada abaixo, em busca da liberdade. E da jogatina.
Quem não tinha de girar a abrir a umas cabeças de gado ficava por ali arramalhado, entrando no jogo se tinha botões, dando opinião, jogando por fora.
Morrera o gosto do pião. A febre, agora, era a esbarra.
No adro da igreja, a parede da torre, granito que mãos de canteiros experientes tornara macio, era o sítio preferido.
O João da Angélica era um dos mais entusiastas. E dos mais viciados. Sempre pronto para o desafio, batia, como ninguém, aquela sua marca especial que baptizara de lindinha, fazendo-a pular mais do que o maior saltitão, para longe, bem longe da parede.
Quanto mais longe ficasse, mais difícil para os adversários aproximarem a sua; ele sabia.
Quando, por outro lado, era a sua vez de atacar os inimigos, aproximava-se calmamente da parede, olhava as outras marcas ali prostradas a seus pés, indefesas, media a distância com um olhar experiente e esbarrava a sua lindinha com uma força e sob um ângulo devidamente calculados. Ela voava e ia parar, junto a outra, a pequena distância. Para ganhar um botão, constava das regras aprendidas e passadas de geração em geração, era preciso que essa distância não fosse maior que o palmo do jogador.
Nesse dia, a ordem da mãe era para que não se demorasse, devendo seguir directamente da escola para o Demoninho, pois, em dia de sementeira todas as ajudas eram poucas. E que levasse também o Tonito, irmão mais pequeno, já a lutar com o abecedário e com o senhor Peixoto.
Ao tempo, poucos iam à aula. E então os pobres...
A senhora Angélica, porém, era diferente. Pequenita, mas de ferro. Sem teres nem haveres, sem nunca ter aprendido uma letra do tamanho desta casa, abandonada pelo marido, cinco filhos todos canalha miúda, impunha-se para que nenhum ficasse sem saber assinar o seu nome.
O João era o mais velho e já lia no paleógrafo. Por isso, ela o queria na escola, mesmo em dia de sementeira. Mas, logo após, ala; queria-o consigo, que os quefazeres eram muitos e os braços poucos.
Nessa hora, o Zé da Inácia passava por ali e, com ar superior, exibia um punhado de botões, alguns de osso, outros de massa, poucos de vidro e duas marcas.Não seria difícil saber onde os conseguira. A criada da senhora Aninhas, no coradoiro do rio, junto à ponte velha, fazia um bravém que até parecia morte de homem ou casa queimada:
- Ai, quem me acode?
Que contas hei-de dar à minha senhora?
Ladrões! Nunca se viu tal desaforo. Por pouco, não escapava um. Até as marcas das ceroulas!...
Para farejar um coradoiro à hora da sesta; para estorcegar, num relâmpago, uma dúzia de botões; para se pôr na alheta em menos de um fósforo, ninguém como o Zé da Inácia. Assim tivesse jeito para o trabalho, aquele dianho. Que corpo já ele tinha. E precisão também. Mas não. Assobiando, fazia subir no ar, em jeito de repuxo, o punhado dos seus botões que reapanhava com perícia, e em flecha a inveja da miudagem.
O João da Angélica, hipnotizado, esqueceu a mãe e a sementeira.
- Vamos a isso.
Chegaram-se à parede da igreja, do outro lado da rua. A malta atrás deles; depois fazendo roda.
- Não atrapalhem!
Quase não falavam. O Zé andava-lhe com sede. O ar importante com que muitas vezes o depenara, trazia-o ali atravessado.
Feito o sorteio, coube ao da Angélica começar. Bateu. Ela saltou. Era uma marca igual a tantas outras, mas para ele muito diferente. Dava-lhe sorte. Com ela jogava bem. Ganhava sempre.
- Ah lindinha! - dizia, ao mesmo tempo que abria a mão a medir a distância a que ficara da outra.
- Foi por pouco.
O jogo prosseguia. Desta vez, mais equilibrado do que o costume. Mesmo assim, já levava três de ganho. Três dos que o Zé da Inácia achara mais feios e, por isso, escolhera em primeiro lugar para ir pagando o perdido: dois botões de ferro, de calças de homem - uma porcaria de que ninguém gostava e, daí, estarem sempre a mudar de mãos - e um de camisa, raquítico e feioso. Mas eram botões. E, para o efeito, valiam como os melhores. Logo que não tivessem os buracos partidos ...
As horas passavam.
E a sorte também. Tivera oito de ganho, incluindo um amarelinho, do feitio de uma flor. Depois ... parecia enguiço. Não atinava uma. Aos poucos, perdera os oito, mais quatro que trazia no bolso e já estorcegara o primeiro da braguilha, depois de arrancar da camisa, tantos quantos ela tinha. Uma vez por outra, lá ganhava; para perder três, quatro vezes a seguir.
Um a um, perdera tudo. Restava-lhe a lindinha e, das calças, o de cima, um botão para si sagrado que em nenhuma aflição seria capaz de estorcegar. A esse estava destinado o importante e duplo papel de aperto na cinta e suspensão das calças, pois também abotoava na petrina.
Na ânsia de recuperar alguma coisa e de amarfanhar o semblante galhofeiro do da Inácia, jogou mais uma vez. Para ganhar. A sorte não podia abandoná-lo.
Perdeu.
- Fico-te a dever. Pago amanhã.
- Homessa! ... Ao jogo não há fiados. Não é o que tu dizes?
Como pagar? Com a lindinha ou com o último das calças?
A lindinha, nunca. Furioso, com o sangue a subir-lhe à cabeça, olhou o adversário, mediu-o de alto a baixo, capaz de o comer.
O outro, mais velho, mais alto, mais forte, moralizado com a sorte do jogo, endireitou-se, pronto para o esfrangalhar.
O João da Angélica sentiu o sangue a bater nas fontes; mas acobardou-se. A rilhar os dentes, estorcegou o último botão que, a tremer, entregou ao antagonista. Fora de si, só se apercebeu da figura em que se encontrava, quando a algazarra da miudagem que os cercava o acordou e lhe deixou ver as calças caídas aos pés e ao léu tudo quanto Deus lhe dera.
Num pronto recuperou o sangue frio. Abaixou-se, apanhou as calças, puxou-as acima. Empertigou-se e, como homem experiente sabedor de que a vida tem ganhar e tem perder, foi-se dali a assobiar, segurando bem as calças com a mão esquerda, enquanto com a direita, acariciava o seu botãozinho mágico, aquela marca que lhe chegara na jogatina, das ceroulas sabia lá ele de quem e havia de continuar a ser a peça da sua sorte.
- Ah, lindinha!
António Lopes Pires
Do livro: Zé Bisnau e Outras Histórias