Gastronomia beirã
O povo da Beira viveu sempre entre montes e vales, dependendo da agricultura, uma agricultura de subsistência, para ir vivendo. O trabalho da terra ocupava a grande maioria da população, a troco de uns tostões de salário, quantas vezes pagos com produtos agrícolas, habitualmente, uma rasa ou um alqueire de milho. O pãozinho, o pãozinho de Nosso Senhor tinha de estar sempre na mesa, ainda que, tantas vezes, por medida de poupança, ninguém lhe tocasse, que na refeição do dia seguinte o pão não podia faltar.
História significativa é a daquele menino que contava entusiasmado:
- Ontem, em minha casa, houve uma grande festa. O meu pai, mesa abaixo, mesa acima, perguntava:
- Quem quer mais “auga” de caldo? Quem quer mais “auga” de caldo? Mesa abaixo, mesa acima: - Quem quer mais “auga” de caldo?
- E pão? – pergunta o interlocutor? Então e o pão?
- Cala-te aí. Se “houvera” pão também “to dixera”.
Era assim mesmo, dificuldades enormes, vida difícil.
As refeições tinham significado especial, e com alguma ansiedade se esperava por dias assinalados na roda do ano com vista a uma refeição especial que todas as famílias planeavam com antecedência. O Natal, o Carnaval, a Páscoa e, sobretudo, a festa anual do padroeiro eram esses dias. Recorria-se a uma ou outra galinha bem guardada para o efeito, ao coelho bem alimentado com arregaçadas trazidas do campo propositadamente.
Matá-los era cerimónia cheia de rituais que anunciavam a festa. O coelho, dependurado pelas pernas traseiras na mão esquerda do “assassino”, levava, da mão direita bem aberta, uma pancada seca e rápida na cabeça, por trás das orelhas que, partindo-a pelo nó vital, abatia o desgraçado imediatamente, quase sem sofrimento. Depois era a cerimónia de o dependurar em prego próprio, para o trabalho de tirar a pele, inteirinha, para merecer os quatro ou cinco tostões oferecidos pelo comprador ambulante sempre a passar por ali.
- Peles de coelho! Farrapos e peles de coelho!
Já as desgraçadas das galinhas, sofriam a bom sofrer. A Maria da Inácia abria as pernas e, com a ajuda da saia bem rodada, prendia-as que nem tugiam. Só bradavam, coitadas, mesmo sem saberem ao que ali estavam. Com a faca da cozinha aguçada nas beiças do alguidar, serrava, serrava aquele bonito pescoço pelado de uma gorda pedrês tanto merecedora de festa de aldeia como de festa de mulher parida, até que a cabeça da triste, caía no chão, para ser disputada pelos cachorros que sempre espreitavam por ali. O sangue era bem aproveitado que, na natureza e nas casas do povo, nada se perdia.
O estudo da gastronomia do povo português, designadamente, do povo beirão, leva-nos a concluir tratar-se de uma gastronomia simples que aproveitava os produtos da terra e os animais da capoeira e do curral. Os gados, detidos por minorias privilegiadas, forneciam o leite para pequeno almoço e doçaria de “ricos”, e os cordeiros, cabritos e leitões para as grandes festas da família. As maiores de todas eram os batizados e, sobretudo, os casamentos. Ter um casamento na família, designadamente, casamento de uma filha, era o mesmo que ter um incêndio em casa: ardia tudo ou quase tudo, uma desgraça. Sim, que a boda era obrigação da família da noiva.
O porco na salgadeira era o governo da casa para um ano, que outro porco só para o ano da frente. A mãe de família geria todas as peças para os dias e as circunstâncias adequadas. As morcelas subiam para o fumeiro esperando pelas alheiras e pelas chouriças que depois haviam de permanecer no pote do azeite ou no arcaz do milho, de onde sairiam, uma a uma, numa exigente contabilidade, para a mesa em dia de festa.
E o povo mais simples, menos abonado?
Recorria às ervinhas do campo e à imaginação. E vivia feliz e bem alimentado:
Batatas com sabor a leitão:
Cortam-se as batatas em gomos e, numa padela de barro preto de Molelos, temperam-se com sal, colorau e azeite ou gordura de porco. Por cima, espalha-se meia dúzia de folhas de louro. Vai ao forno em dia de cozer o pão. E pronto.
- Então e o leitão?
- Pois, as folhas de louro dão o paladar e o cheirinho, aquele gostinho do leitão com as batatas, batatas com sabor a leitão.
António Lopes Pires
Passos de Silgueiros, 25 de junho de 2019