Vindimas no Douro
Depois da ceia, o pessoal, extenuado, esfarrapado e imundo, cabeceava pelos cantos, ainda à espera de mais trabalho. Ganho o dia aos cestos, era preciso ganhar a noite no lagar, num chouto que a princípio dava gosto e alegria, e se prolongava numa tortura desesperante. O sono parava os nervos e os músculos, e a vontade tinha de protestar, de combater, de movimentar à sobreposse as articulações, mais perras que dobradiças enferrujadas. Às tantas, erguer uma perna tornava-se um sacrifício. O resto do corpo quase que desanimava perante a obstinada renúncia daquela parcela amortecida, inerte e pesada na espessura do mosto. Mas tudo na vida acaba, e a penitência não fugia à regra. Medida no relógio do Jacinto, com rigor de quem pesa oiro, a hora almejada do despegar chegava finalmente. E, num automatismo resignado, lá iam procurar na palha forças para o dia seguinte.
Miguel Torga,
Vindima, 4.ª edição, Coimbra, p. 178.