Quaresma, tempo de abstinência, reflexão, penitência. Mas tempo também de recordar quem partiu.
Um pouco por todo o lado, homens, nalgumas regiões, mulheres, noutras e homens e mulheres, noutras tantas, juntavam-se no período quaresmal para, diariamente, cantarem e rezarem às almas.
De essência cristã, a amenta, ementa ou encomendação das almas era uma das tradições quaresmais mais respeitada e acarinhada pelo povo português.
As almas dos entes queridos, sujeitas às penas do purgatório, necessitavam das preces dos vivos para alcançarem a vida eterna. Quaresma fora, em condições climatéricas tantas vezes adversas, o grupo da ementa das almas ia para a rua cantar e rezar às almas, no sentido de que, quem, no quentinho dos seus lares o ouvia, se lhe juntasse nas preces pela salvação de parentes e amigos falecidos:
“Ó irmãos que estão na cama
nesse sono tão profundo,
lembrai-vos das vossas almas
que lá estão no outro mundo.”
P. N. A. M.
Pouco antes da meia-noite, um a um o grupo ia-se concentrando no adro da igreja. Ninguém falava; ninguém olhava para trás. O medo impedia-os de quebrar a tradição; as almas penadas, os fantasmas, as figuras mais ou menos grotescas e fantasmagóricas que povoam as noites e o imaginário de tantos, rondavam o lugar esperando um deslize, uma falha, atacando os incautos. Grupo completo, tocava a campainha e iniciava-se o ritual. Todos se benziam e o cântico começava:
“Na hora de Deus começo,
Pai, Filho e Espírito Santo
Por ser o primeiro verso
Que neste auditório canto.”
P. N. A. M.
Seguiam-se sete poisos. O mesmo ritual. Durante quarenta dias ouvia-se por toda a aldeia o cântico arrepiante e lúgubre do ementar das almas. Em casa, tremendo de medo por sob as cobertas, as pessoas rezavam, fervorosamente, por pai, mãe, filho ou marido já desaparecidos. Em Sábado Maior tudo terminava em grande festa de alegria e Ressurreição. Durante o dia preparavam-se coroas, desfolhavam-se flores que iriam embelezar cada um dos sete poisos no final de cada cântico. O grupo finalizava o ritual na capelinha da Senhora da Guia, no bairro do Cimo da Aldeia. Terminado o ementar, ainda em silêncio, o Zé Alho, o mais velho do grupo, dava o tom e todos cantavam um cântico final a Maria, pedindo protecção para as suas próprias almas:
“Nome de Maria,
Que tão lindo é
Salvai a minha alma
Que ela Vossa é.”
“Que ela Vossa é,
Sempre há-de ser,
Salvai a minha alma
Quando eu morrer.”
Quaresma, quarenta dias de jejum e abstinência que medeiam entre a Quarta-Feira de Cinzas e a Páscoa, dia grande da festividade da Ressurreição de Cristo. Em termos bíblicos, o número quatro simboliza o universo material, as provações, dificuldades, sacrifícios, por que passa a Humanidade na sua passagem pelo mundo terreno.
Quaresma, quarenta dias de sacrifício, provação e penitência de Jesus no deserto.
Quaresma, quarenta dias de abstinência, reflexão e penitência dos crentes; quarenta dias de sacrifício e penitência pela salvação das almas; quarenta dias de sacrifício e penitência do grupo da ementa pela expiação das próprias falhas preparando, assim antecipadamente, a entrada no Céu quando a hora de cada um fosse chegando.
Maria Odete Madeira
Passos de Silgueiros, 2 de Março de 2009