Namorados
Os namorados escolheram – ou alguém por eles – o dia de S. Valentim, para o seu dia.
Dias de namorados, hoje, são a nosso ver, todos os dias do ano. Referenciar de entre eles um em especial é, talvez, a pausa para reflexão sobre o futuro, a oportunidade para recíprocas gentilezas especiais.
No passado, o povo das nossas aldeias, a propósito do seu namoro, tinha tradições a respeitar, tradições que dificultavam o estabelecimento das relações amorosas. As raparigas, então, estavam sujeitas a convenções que em nada as favorecia.
Era impensável que pudessem, alguma vez, tomar a iniciativa de manifestar o seu amor ao ente amado. Mesmo para corresponder às solicitações que lhe eram dirigidas, ainda que, morrendo de amores, não poderiam dizer sim, Senão a partir da terceira declaração de amor, o que, muitas vezes afastava pretendente menos perseverante:
Já o adro criou relva,
Já não há passeadores;
Já se foram desta terra,
Meninas, os seus amores.
Não podendo lutar contra estas dificuldades e convenções, os jovens aproveitavam todas as oportunidades para encontrarem o seu Dia dos Namorados ou criavam mesmo algumas outras.
Boas oportunidades eram a 5.ª feira das Comadres e a 5.ª feira dos Compadres, as quintas-feiras que antecediam o domingo magro e o domingo gordo, respectivamente, com o prolongamento que a Quaresma propiciava, até às alegrias do Domingo de Páscoa.
O primeiro daqueles dias era das raparigas. Aproveitando a época de liberdades e menores exigências que o Carnaval autorizava, elas procediam como entendiam, às vezes, como podiam.
Reunidas secretamente em pequenos grupos, começavam por fazer a lista das raparigas casadoiras da sua terra, do seu sítio, do seu bairro, bem assim a dos rapazes nas mesmas condições, não esquecendo, é óbvio, os das suas intenções ou preferências.
Mandava a tradição que se fizesse um sorteio que havia de os acasalar, para que cada qual encontrasse o seu compadre, a sua comadre, o embrião do noivado com que elas sonhavam para chegar ao altar.
O sorteio, porém, era arriscado. A sorte nem sempre funcionava a contendo das sorteadas. Então, como tudo era feito em segredo, era possível dar uma ajuda ao acaso que as havia de colocar no caminho do compadre da sua ambição.
— Olha, põe-me lá antes com o Zé da ti Laurinda…
O primeiro passo estava dado. O resto pertencia agora a Santo António a quem, com muita fé, rezavam em devido tempo.
No dia seguinte, logo de manhãzinha, todos acorriam à venda do Teles, em cuja porta elas haviam colado com farinha centeia a grande folha de papel que, apesar das nódoas de gordura e dos muitos erros ortográficos, lá continha, legível, a relação dos seus anseios.
Risadas, galhofas, ansiedades, ilusões, desilusões…
Na semana seguinte, eram eles a tomar a iniciativa.
Também faziam as listas com os nomes do seu desejo, os sorteios, as pequenas batotas:
- Não, a Maria da Inácia tem de calhar comigo!
E calhava!
Mas faziam mais. Para se vingarem da mangação de umas e da prosa de outras, acasalavam-nas com velhos solteirões ou figuras consideradas ridículas sempre existentes em todas as aldeias.
Por isso, manhã bem cedo, a corrida até à venda do Teles, a ler e a pedir que lhe lessem o rol, o qual, não poucas vezes, era logo ali destruído, quando a brincadeira era tomada por ofensa.
Em breve chegava a Quaresma. A caminho da fonte ou dos trabalhos, os compadres encontravam-se; e o mais interessado, logo lançava o primeiro grito:
- Reza, Manel.
Se era correspondida – e era quase sempre – o jogo da reza durava todas aquelas sete semanas, até à Ressurreição do Senhor, momento em que ao rapaz cumpria oferecer as amêndoas à sua comadre, o grande teste para ela poder avaliar a força do seu interesse.
Quando, em Domingo de Páscoa, eles e elas, em grupos, acompanhavam o compasso cantando:
- Já nasceu o nosso Deus. Aleluia, aleluia,
não queriam senão significar:
- Já achei o meu amor, aleluia, aleluia, aleluia.
António Lopes Pires
Do livro: Zé Bisnau e Outras Histórias