Tempo de folguedos próprios dos costumes do mundo ocidental, o Carnaval está ligado às mais puras tradições do povo português.
Período a anteceder a Quaresma – sete semanas de sacrifícios e penitências – o Carnaval, é a outra face da Quarta-Feira de Cinzas.
O nosso povo aproveitou-o, desde remotos tempos, para folgar, para rir, para escarnecer, para se vingar.
Os folguedos começavam no Domingo Magro, mas os grandes dias eram o Domingo Gordo e o Dia de Entrudo.
As danças de todo o ano eram igualmente desta época.
Toda a gente vinha ao terreiro: novos e velhos formavam a grande roda; cantavam, dançavam horas a fio, uma dança a toda a hora interrompida. Porque as raparigas, mormente as casadoiras, eram atacadas com punhados de farinha ou com a fuligem da parinheira: gritos, insultos, gargalhadas, resposta pronta; porque, seguidos do rapazio em grande algazarra, iam passando os “máscaros” que toda a gente gostava de apreciar. Caras tapadas, lenço amarrado à cabeça, saia arregaçada, pernas “provocantes” ao léu, lá iam, todos os anos, o João Laré, o Moira, o Zé Bisnau, o Tinta Fina, o Pirré, o Bintura, e tantos e tantos outros.
Depois era a dança dos púcaros; cantando sempre, em longa fila, mormente de mulheres casadas, eles lá iam percorrendo as ruas da aldeia, jogando, de mão em mão, por cima das respectivas cabeças, os velhos cântaros, potes e púcaros de barro, até que o jogo tivesse de terminar, por se terem partido todas as peças durante o ano guardadas para o efeito.
Antes da noite, era preciso fechar cuidadosamente todos os janelos. É que, pelo escuro e na calada, lá viria de certeza o panelão dos bugalhos que se esmagaria com enorme e característico estrondo, causador de grandes sustos pelo inesperado e de grandes arrelias pelo atrevimento. Como sempre, quem mais reagia ou barafustava tinha honras de prioridade e direito a repetição.
E eram também as pulhas – movimentações em volta das casas daqueles de quem se tinham ofensas ou que se queriam irritar, repetindo, repetindo, repetindo, com o recurso ao funil e em tom monocórdico, as ofensas ou ditos irritantes.
Mas atenção, era preciso ser ligeiro e girar a distancia segura que, de dentro, podiam responder – e respondiam – com o arremesso de líquidos orgânicos, durante dias armazenados a pensar nos atrevidos.
Já noite dentro, no Dia de Entrudo, eram os cabaços.
Colocados em lugares estratégicos, por forma a serem ouvidos em toda a aldeia, dois homens, armados, cada qual, com um daqueles instrumentos ou de um grande funil – os altifalantes da época – iam divulgando pequenos e grandes segredos: das raparigas, dos inimigos, causando, quantas vezes, verdadeiros escândalos.
António Lopes Pires
Do livro: Zé Bisnau e Outras Histórias