A TRADIÇÃO POPULAR PORTUGUESA
Falando de tradição popular estamos a falar de memórias de um passado mais ou menos longínquo e de procedimentos que nos individualizam face a outras culturas e a outros povos.
Hoje, os fenómenos da nossa integração europeia e, de modo geral, de uma globalização cada vez mais real e assumida, nos fazem pensar na necessidade de se investigar, recolher e salvaguardar aquilo que nos há-de distinguir dos demais povos com quem cada vez mais somos obrigados a privar.
E falar de tradição popular, de cultura tradicional ou de herança cultural popular dos Portugueses estamos a usar sinónimos de uma palavra que entrou no nosso uso quotidiano, mas que, infelizmente, ou não tem sido usada com a-propósito ou não tem sido bem interpretada ou não tem sido bem compreendida. Ou talvez um pouco de tudo junto. Refiro-me, como já devem ter deduzido, à palavra Folclore.
A palavra Folclore, como é do conhecimento generalizado, apareceu pela primeira vez na Inglaterra, criada por William Thomas em 1846, a partir de duas outras: folk (povo) e lore (saber ou sabedoria).
Assim sendo, temos então que, etimologicamente, folclore significa o conjunto dos saberes de um povo, de um determinado grupo social, culturalmente significativo. Mas que saberes, perguntaremos. Em meados do século XIX quando o termo apareceu, a que povo se referiria?
Há dez mil anos o homem descobriu a agricultura e, de nómada que era, sedentarizou-se, ou seja, deixou de andar de sítio em sítio buscando alimentos e abrigo e passou a produzir para si e para o seu grupo — e em grupo — família, aldeamento, tribo, tudo quanto lhe era necessário para sobreviver, mais tarde para viver. Durante séculos, durante milénios, o homem foi simultaneamente produtor e consumidor. As pequenas comunidades foram obrigadas a encontrar em si mesmas as soluções para todos os seus mil problemas, desde os mais pequenos aos maiores, dos mais simples aos mais complexos, como, por exemplo, construir alfaias, instrumentos e carros; fabricar tecidos, fatos e calçado; formar artífices dos mais diferenciados; criar remédios para todos os males que o apoquentavam; inventar benzedeiras, curandeiros e aparadeiras; desvendar os mistérios da natureza, da vida e da morte. Tudo tinha de ser encontrado na pequena sociedade local.
O homem, mesmo o dos meios rurais mais isolados, acumulou então um grande conjunto de saberes, resultado do método de ensaio e erro, resultado de uma vivência muito larga, a que chamamos empirismo. E mais: como não havia forma de registar esses saberes, esses procedimentos, esses comportamentos, a sua manutenção e a sua divulgação fizeram-se pela forma mais natural: a transmissão oral (contava-se o que se ouvia contar), a transmissão visual (fazia-se como se via fazer), com as também naturais consequências destas formas de transmissão: o rigor não é assegurado, pois, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto e o progresso, a evolução, a melhoria dos resultados obtidos são particularmente lentos.
Surgindo já no século XVIII, é verdadeiramente no século XIX que aparece um segundo grande movimento de mudança trazido pela revolução industrial. Esta é responsável pela grande rotura que irá dar-se nos procedimentos tradicionais e que irá fazer mudar completamente a face da Terra. E tudo porque a descoberta da máquina a vapor separou para um lado a produção e para outro lado o consumo.
A abertura de fábricas — sempre cada vez mais fábricas — implicou grandes e rápidas transformações numa sociedade que durante milénios se mantivera sem grandes alterações, exigindo novos operários, sempre cada vez mais operários. Por isso os rurais, cada vez mais rurais, correm para as cidades em busca de novas ocupações e de melhor nível de vida. O tempo até aí sem preço passou a ser rigorosamente controlado. O desejo de trabalhadores qualificados levou à abertura de escolas — o ensino tornou-se obrigatório. A necessidade de vender para todo o país e até para todo o mundo os produtos fabricados em série e em quantidades sempre crescentes conduziu, para além do mais, à criação de moedas nacionais e de sistemas monetários internacionais.
As luzes da cidade, sempre cada vez mais cintilantes, deslumbram e chamam cada vez mais e em maior número os simples camponeses, transformando-os em operários.
A civilização industrial, directa e indirectamente, exerce influência sempre cada vez maior sobre as sociedades rurais que se vão também a pouco e pouco transformando.
A dado momento, em tempos diversos para os diferentes países e regiões do mesmo país, é nítida a existência e convivência de duas culturas distintas: uma de raízes profundas perdidas na lonjura dos séculos em que tudo tem a ver e está ligado a velhos hábitos, costumes e tradições, em que os procedimentos se repetem sem grandes alterações, de geração em geração; outra de pendor científico, relacionada com a escola onde tudo se aprende, em que a objectividade é lei.
Digamos que em Portugal, em algumas regiões de Portugal, nos finais do século XIX ou mesmo já em pleno século XX conviviam, por vezes em simbiose perfeita, duas culturas bem distintas e diferenciadas: uma, a da tradição, a do subjectivo; a outra, a do livro, a da escola, a do objectivo. Nesta tudo gira à volta das leis e dos princípios científicos; naquela tudo assenta no empirismo, na tradição, no fazer como se viu fazer, no contar como se ouviu contar.
Assim, quando manda a ciência, desinfecta-se um golpe com tintura de iodo para impedir o ataque das bactérias ao organismo; quando impera a tradição mija-se no golpe porque o que arde cura. Quando manda a ciência combate-se a infecção com antibiótico; quando impera a tradição, lava-se a infecção com água de malvas ou reza-se à zirpela ou ao zirpelão.
É este saber do povo, este lore do folk que constitui o objecto do Folclore, a cultura tradicional, uma parte muito importante da cultura global dos povos.
O que é então o Folclore?
Folclore é a expressão da cultura tradicional relativa a comportamentos, usos, vivências e valores que qualquer grupo social relevante culturalmente utilizou durante tempo suficiente para impor a sua marca, independentemente da sua origem e natureza[1].
A UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura) na sua conferência Geral em Paris, a 16 de Novembro de 1989 define: a cultura tradicional e popular é o conjunto das criações que emanam de uma comunidade cultural, fundadas na tradição, e expressas por um grupo ou por indivíduos, respondendo às expectativas da comunidade, como expressão da identidade cultural e social desta, transmitindo-se oralmente, por imitação ou de maneira semelhante, as suas normas e os seus valores. As suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquitectura e outras artes.
Um conceito de que hoje muito se ouve falar também é o de Etnografia. Porque o tempo de que disponho não o aconselha, abstenho-me de o clarificar como me parece que merecia. No entanto, quero chamar a atenção dos folcloristas para a necessidade de se acautelarem quando usam estas expressões, uma vez que não são sinónimas, embora sejam complementares.
De entre os variados aspectos que devem ser estudados no domínio da tradição popular, por falta de tempo, quero debruçar-me hoje apenas em um dos que considero mais significativo, embora não seja entre nós o mais estudado ou conhecido — a literatura oral.
LITERATURA ORAL
Sabemos que o homem do povo, mesmo aquele que não teve acesso aos bens de cultura como os conhecemos, hoje consensualmente considerados indispensáveis e até socialmente exigidos, por outras palavras, aquele que não fez o percurso da escola institucional, antes fez o percurso da escola da vida, dispõe, apesar disso, de inúmeros saberes ancestrais porque a sua aprendizagem se fez, principalmente, a partir de tudo quanto viu fazer e de tudo quanto ouviu contar.
Podemos dizer com Alexandre Parafita que tais saberes e valores cristalizaram numa arte popular expressa de forma simples que constituem a chamada literatura popular.[2]
Esta arte do povo simples, por vezes erradamente considerada como coisa de inferior qualidade, deve merecer-nos o máximo respeito, não só pelas qualidades e especificidades que encerra, mas ainda porque através dela nós podemos estudar e conhecer melhor o povo que a praticou e no-la transmitiu. Mais do que isso, muitos de nós ainda poderemos encontrar nos escaninhos da memória as lembranças saborosas de outros tempos, a que estão ligados sentimentos de ternura, de carinho, de satisfação de alegria, de entusiasmo. Quem, em menino, nunca adormeceu ao som de ternurenta cantiga de embalar que mãe carinhosa lhe cantou como a ela própria sua mãe havia cantado:
Dorme, dorme, meu menino
Um soninho descansado,
Que o papão já foi embora
De cima desse telhado.?
Quem nunca respondeu ou ouviu responder adequadamente, em tempo oportuno, a pergunta indiscreta vinda de qualquer atrevido :
Quem tudo quer saber, nada se lhe diz.?
Quem é que já esqueceu o prazer que sentiu em brincadeiras com amigos e companheiros, a propósito das dificuldades para pronunciar de forma conveniente as palavras contidas em certas frases e ali colocadas propositadamente para travar a língua e criar ensarilhadas linguísticas:
Debaixo daquela pipa está uma pita.
Quando pia a pita, pinga a pipa.
Pia a pita, pinga a pipa.?
Quem é que nunca recorreu a uma situação de segredo mais ou menos escondido entre palavras, para atrapalhar alguns que se consideram mais sabidos e capazes de adivinhar:
Qual é coisa, qual é ela
Que tem a boca no pé?
Quem é que nunca teve o prazer de ouvir e contar as lendas da sua região ou do seu país, os contos que antigamente eram peças obrigatórias dos serões das famílias?
Era uma vez …
Quem é que nunca ouviu falar das antigas dificuldades da gente do nosso povo, pobre, abandonado e humilde, para curar os males que o apoquentavam, visto que, ao tempo, médicos era coisa que não havia, ou ficavam tão distantes que o remédio era mesmo encontrar outro remédio. Recorria-se então às rezas e mezinhas, dado não haver outras alternativas.
Estamos, pois, em face do que se chama a literatura oral popular. E esta, enquanto literatura viva, tem duas características fundamentais que a distinguem:
- É sempre transmitida por via oral, ou seja, nunca é escrita.
- Sofre as naturais transformações ou modificações resultantes desta forma de transmissão. Podemos por isso dizer que não há duas versões rigorosamente iguais, pois, como atrás dissemos, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto.
Não se pense que esta forma de literatura, por ser de origem popular, não erudita e por não ser escrita, terá menor valor do que a outra, a dos grandes escritores que a fazem segundo regras mais ou menos impostas ou aceites, pensando bem no que escrevem para que os futuros leitores possam pensar de forma positiva do seu autor, corrigindo frases e textos as vezes que entendem, antes de serem entregues no editor ou na tipografia, para só muito mais tarde — às vezes anos — chegar às mãos do seu destinatário, o leitor.
Já na literatura oral popular a intenção vai no sentido de uma acção para o imediato; quem a usa pretende obter resultados imediatamente, e sem nunca pensar que o interlocutor possa alguma vez dar ao seu dito, sentença, adivinha quadra, conto ou trava-línguas uma interpretação diferenciada:
— Ó Zé, ainda hoje não fizeste nada.
- Quem se mata, morre cedo. Ou
- Tamanha pagueta, tamanha trabalheta. Ou ainda
- Não fales tão alto, que te podem ouvir.
Outras circunstâncias há em que a literatura erudita, científica, escrita, não funciona, ao contrário da de expressão exclusivamente oral. Vejamos a seguinte adivinha:
Cal é coisa, cal é ela, que ainda agora falei nela?
Parece ter ficado claro que na Cultura Portuguesa, mais especificamente, na Literatura Portuguesa há uma componente de raiz popular, que nunca foi transmitida de geração em geração pela via da escrita, mas que, tal como a sua irmã erudita, merece igualmente ser bem tratada, ser bem guardada, ser bem conhecida, ser bem estudada. E como quem é seu depositário é, por via de regra, o povo mais humilde, menos evoluído científica e escolarmente, cabe a todos aqueles que para tanto têm meios — e o meio principal consiste em saber ouvir e saber escrever — a obrigação de salvar do esquecimento, talvez da perda total e irremediável, o muito que ainda por aí anda no pensamento e na boca dos mais idosos, fontes de sabedoria que podem secar de um momento para o outro
E já agora, de um enorme rol possível, registemos alguns aspectos da Literatura Oral que poderão ser procurados e recolhidos, acrescentando alguns exemplos significativos para que seja possível apreciar a beleza com que por certo se deparará quem se der a esse trabalho de busca.
Segundo alguns autores, a Literatura Oral Popular é constituída por três grandes grupos ou géneros:
Formas e jogos da língua.
- provérbios;
- ditos;
- adivinhas;
- lengalengas;
- trava-línguas;
- parlengas e jogos infantis;
- rezas;
- orações.
- a poesia.
Formas narrativas.
- lendas;
- contos;
Formas dramáticas e musicais.
- teatro popular;
- rimances;
Se a segunda e terceira formas são de mais complexa recolha, já outro tanto não direi a respeito da primeira que me parece perfeitamente ao alcance dos alunos de uma qualquer escola portuguesa. Dela, e apenas dela, gostaria de me ocupar também hoje, se a tanto me encorajasse a vossa paciência.
Vejamos então:
Provérbios
Os provérbios têm diversos nomes por que também são conhecidos: adágios, ditados, rifões, aforismos, anexins (ch), prolóquios, apotegmas, máximas, sentenças …
São talvez dos aspectos mais conhecidos da Literatura Oral Popular. Toda a gente sabe de cor várias destas peças.
Muitos estudiosos se têm por eles interessado, fazendo e publicando recolhas, chegando mesmo a haver revistas que se ocupam exclusivamente desta matéria. A primeira colecção conhecida data de 1651 e deve-se ao Padre António Delgado.[3]
Ditos Populares
Parecidos com os provérbios, não devem confundir-se com estes, pois não chegam a completar uma proposição. Não deixam por isso de ter grande importância pela forma como através deles podemos conhecer melhor o povo que os utilizou:
Estar entalado.
Fartar-se depressa.
Comer da mesma manjedoira.
Cantar de galo.
Pintar a manta.
Adivinhas
Andam por aí à espera de quem se lembre delas. É só recolhê-las:
Na água não se molha; no fogo não se queima. O que é? (Sombra)
O que é que, sendo apenas teu, é mais usado pelos outros que por ti? (O teu nome)
O que é que se tira uma vez e fica para sempre? (O retrato)
Lengalengas
As lengalengas, ou parte delas, por vezes, não fazem grande sentido. Vivem do seu forte ritmo e da sua rima e são óptima oportunidade para os meninos treinarem a pronúncia de algumas palavras e exercitarem o aparelho fonador:
Tão, balalão,
Cabeça de cão,
Orelha de gato,
Não tem coração.
Trava-Línguas
Tal como as lengalengas, vivem da rima e do ritmo, servindo para exercitar a pronúncia, mas também, um pouco em jeito de ratoeira, para apanhar os desprevenidos a quem se levantam dificuldades por vezes traiçoeiras:
- O rato roeu a rolha da garrafa de rum do rei da Rússia.
- Debaixo daquela pipa está uma pita:
Pinga a pipa, pia a pita;
Pinga a pipa, pia a pita;
Pinga, etc.
Em cima daquela árvore está um ninho de mafamaguifa, com sete mafamaguifinhos;
Quando a mãe mafamaguifa vai dar de comer aos sete mafamaguifinhos, fazem tamanha mafamaguifada que se ouve na serra da arada.
Cachapim, capachorra;
Cachapim, capachorra;
Cachapim, …
Debaixo daquele púlpito pardo,
Está um pardal pardo palrante.
Porque palras pardal pardo palrante?
Palro e palrarei,
Porque sou o pardal pardo
Palrador d’el rei.
Parlengas e Jogos Infantis
Por vezes a poderem confundir-se com as lengalengas, as parlengas ou parlendas infantis são pequenos jogos acompanhados e até comandados por linguagem simples, rimada e bem ritmada:
Serrubico, bico, bico, etc.
Rezas
Frequentemente se confunde o sentido das rezas com o das orações. O povo nunca as confundiu e utilizou-as adequadamente, na circunstância exacta. Rezar consistia na utilização de fórmulas da tradição, às vezes com procedimentos acessórios, sempre com o objectivo de curar de males do corpo as pessoas e até os animais. É que numas e noutros, como dizia o povo, tirante a alma, tudo é de carne.
Rezava-se, por isso, à rângula, ao ventre caído, ao embaçado, à dada, ao mau olhado, ao mal de inveja, ao sol, à zirpela, ao zirpelão, à cabrita, à peçonha, ao aberto, …
Rezar ao aberto (rezando sempre em cruz):
Que tens tu, Maria, no teu braço?
Se é veia aberta
Ou rendida
Ou desmentida
Ou quebrada
Ou deslocada;
Ou veia
Ou nervo
Ou tendão
Ou osso fora do seu lugar,
Te entrego a Santa Eufêmia bendita,
Santo Amaro, S. Silvestre,
Nossa Senhora das Necessidades,
Nossa Senhora da Saúde,
Santa Rita
E à Senhora da Conceição
Que ponha o teu braço são.
Padre Nosso, Ave Maria, Salve Rainha.
(Reza-se durante três dias seguidos, três vezes em cada dia,
que é para serem nove vezes)
Rezar ao sol
Como dizia a Ti Elisa dos Prazeres:
Quando as pessoas têm tonturas e dores de cabeça, é preciso tirar o sol. Reza-se com um copo e um guardanapo dos antigos, dos que tinham até uns olhinhos. Dobra-se o guardanapo e põe-se-lhe o copo com água em cima, ficando o cu do copo virado p’ra cima e tem que se segurar o copo para que a água não caia pela cabeça da pessoa, e diz-se:
Deus é sol,
Deus é lua,
Deus é toda a claridade.
Nosso Senhor te tire, criatura de Deus,
Esta enfermidade.
Padre Nosso Ave Maria.
Reza-se três vezes. Sendo sol, a água fervilha.
Orações
As orações são fórmulas elaboradas de forma cuidada, e recitadas de acordo com a tradição. Servem para comunicar com o divino a quem o povo presta a sua homenagem e a quem recorre pedindo ajudas que podem ser a favor das almas dos mortos, das almas dos que ainda vivem e que, orando, se vão prevenindo colocando a seu favor pontos positivos. Usam-se ainda as orações para que a hora da morte seja seguida de imediata entrada no Céu e também para que Deus e os santos se compadeçam de quem esta passando por uma aflição ou provação.
São exemplos
Para dizer ao levantar e ao deitar (pela alma dos vivos):
Quatro cantos tem a casa,
Quatro velas estão a arder;
Quatro anjos me acompanhem,
Quando estiver a morrer:
Dois aos pés,
Dois à cabeceira,
E que a Virgem Nossa Senhora
Esteja à minha dianteira.
Para afastar as trovoadas:
- Gregório se alevantou,
Seu cajadinho tomou,
Seu carreirinho andou,
E encontrou Nossa Senhora.
Nossa Senhora lhe perguntou:
- Para onde ides, S. Gregório?
- Vou espalhar as trovoadas
Sobre nós andam armadas
— Espalhai, espalhai, S. Gregório,
Por onde não haja eira nem beira,
Nem pé de figueira,
Nem bafo de menino,
Nem galo que cante,
Nem galinha que cascareje.
Padre Nosso, Ave Maria
POESIA - Saídas da boca do povo, as quadras ou, a partir destas servindo de mote, as décimas são aos milhares e para todos os gostos e circunstâncias, quase sempre relacionadas com o amor, algumas vezes com o trabalho, outras na velha e nunca acabada guerra de sexos
Que os homens são o diabo,
Não há mulher que o negue;
Mas nenhuma quer ficar
Sem o diabo que a carregue.
No diálogo ou desafio entre os sexos:
Desgraçada foi a hora
Em que vieste ó serão;
Inda hoje vais para casa
Ó Marques, sem no gabão.
Pra que me dizes, Joana,
Que eu vou sem no gabão?
Para ti eu cá vou mesmo,
Mesmo que seja em leitão.
As quadras estão com o povo em todas as circunstâncias: desde o berço até à tumba; nas alegrias, como nas tristezas; no amor e no escárnio; no sobrenatural; nas realidades da vida:[4]
O cantar é dom dos anjos,
O bailar dos namorados;
A alegria dos solteiros,
A tristeza dos casados.
mesmo quando essas realidades são amargas:
Não há coisa que mais custe
Do que amar uma mulher;
Está sempre c’o nariz torto,
Ninguém sabe o que ela quer.
António Lopes Pires
Sever do Vouga, 10.05.2002
[1] Conceito definido no debate de 17 de Novembro de 2001, em Santarém.
[2] Parafita, Alexandre, A Comunicação e a Literatura Popular, Plátano, 1999, fls. 28.
[3] Parafita, A. Obra citada.
[4] Do autor: Folclore, Herança Cultural de um Povo, C. M. de Viseu, 1989, pág. 74 a 76.