A Gastronomia e a Literatura Oral
O prazer proporcionado pela comida é um dos fatores mais importantes da vida depois da alimentação de sobrevivência. A gastronomia nasceu desse prazer e constituiu-se como a arte de cozinhar e associar os alimentos para deles retirar o máximo benefício.
A cozinha da Beira Alta foi e continua a ser uma cozinha recheada de perfumes, rica e variada. Para além do pão, do vinho e do azeite (produtos básicos na dieta mediterrânica), o regime alimentar do dia a dia inclui os produtos locais, colhidos sazonal ou anualmente, como legumes, tubérculos, galináceos, ovos, leite, peixes e carnes várias.
A carne, embora muito apreciada, ocupava um lugar marginal junto das classes sociais mais desfavorecidas, pois lá diz o ditado que “A carne do acém (vaca) é pouca mas sabe bem”.
Por norma, só em grandes dias de festa (casamentos e batizados) é que o povo matava um animal e tirava a barriga de misérias; é que, “Por carne, vinho e pão, deixo quantos manjares são.” De entre todas as outras carnes conhecidas, a de porco era economicamente, a mais acessível ao povo, desempenhando, por isso, um importante papel no seu regime alimentar. A matança do porco e a desmancha eram sempre dias de festa para os mais novos e de grande azáfama para os adultos.
A importância do porco na vida do povo é bem visível no rifoneiro português. Vejamos:
- Morto por morto, antes a velha que o porco.
- A cada bacorinho o seu S. Martinho.
- Porco de um ano, cabrito de mês mulher dos 18 aos 23.
- Não há sermão sem S. Agostinho, nem panela sem toucinho.
- Um sabor tem cada caça mas o porco cento alcança.
- O leitão com vinho torna-se menino.
- Quem tem porco tem chouriços.
- Se queres ver o teu corpo, abre o teu porco.
- Tem o porco meão(mediano) pelo S. João
- Em Janeiro, um porco ao sol e outro ao fumeiro.
A sua carne era consumida fresca, salgada ou em enchidos. Do porco tudo se aproveitava: o sangue para as morcelas, o sarrabulho, as tripas para morcelas, chouriças, alheiras e farinheiras, os ossos da parte do lombo que ainda tinham restos de carne, a banha (parte gorda que servia para cozinhar quando não havia azeite) e o toucinho (salgado e cortado às lascas servia para dar o mata bicho aos trabalhadores rurais, junto com um copinho de aguardente).
A capoeira das galinhas fazia também parte de qualquer casa da aldeia, rica ou pobre. As galinhas, criadas com os restos das refeições e milho, davam para além da carne, ovos. Os ovos sempre tiveram uma grande importância na economia rural. Frequentemente, serviam de moeda de troca para se adquirirem bens essenciais ao dia a dia das populações – o petróleo para as candeias, o sal para temperar as comidas, o açúcar para adoçar o chá dos doentes... Por isso, vender uma galinha a alguém requeria muita discussão e não era barato pois que “Galinha gorda por pouco dinheiro não há no poleiro”. Por estas e outras razões, as galinhas eram consumidas pelo povo apenas em ocasiões de festa, quando havia enfermo em casa ou mulher parida. E mesmo nestas ocasiões a vítima era sempre a galinha mais velha da capoeira pois, como diz o ditado “Galinha velha faz bom caldo.”
A importância da galinha na vida do povo é tal que sobre ela há inúmeros provérbios. Vejamos alguns:
- Aldeã é a galinha e vai à mesa da rainha.
- Aonde a galinha tem os olhos tem os ovos.
- Doze galinhas e um galo, comem como um cavalo.
- É rainha a galinha que põe os ovos na vindima.
- Fraca é a galinha que não esgravata para ela.
- Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém
- Galinha de campo não quer capoeira.
- Galinha de casa mais come do que vale.
- Galinha de eira, quer capoeira.
- Galinha de Janeiro, enche o poleiro.
- Galinha gorda por pouco dinheiro não há no poleiro.
- Galinha pedrês, não a comas, não a vendas, não a dês.
- Galinha pedrês, vale por três.
- Galinha pinta, ovos trinta.
- Galinha que canta de galo, põe o dono a cavalo.
- Galinha que canta, faca na garganta.
- Galinha que canta quer galo.
- Galinha preta põe ovo branco.
- Galinha velha, faz boa cozinha.
- Galinhas de São João, pelo Natal poedeiras são.
Já o peixe era pouco apreciado por ser considerado pouco nutritivo pois, como nos diz a sabedoria popular “O peixe não puxa carroça.” No entanto, a sardinha e o bacalhau eram muito usados no regime alimentar do povo português. Segundo reza a história, estes dois produtos eram abundantes e de baixo custo, razão pela qual as classes sociais mais abastadas os desdenhavam. A expressão popular “Para quem é bacalhau basta” ilustra bem esta realidade. No entanto, nas casas mais pobres quantas vezes uma sardinha não dada para três!
Também sobre a sardinha o rifoneiro português é rico e variado. Vejamos alguns exemplos:
- Cada um puxa a brasa para a sua sardinha.
- Cevada loira, sardinha como toira.
- Em Agosto, sardinhas e mosto.
- Mulher e sardinha querem-se da pequenina.
- No S. João, a sardinha pinga no pão.
- Quem em Março come sardinha, em Agosto lhe pica a espinha.
- Deus dá couves a quem não tem toucinho
- Se queres ver teu marido morto dá-lhe sardinhas em Março e couves em Agosto
Quanto aos produtos granjeados com o suor do trabalho do Homem entravam com alguma abundância na casa de toda a gente, incluindo os mais pobres. A couve, os grelos, a batata, o nabo, a cebola, a abóbora, a nabiça faziam parte integrante do regime alimentar das populações pois, “Nabiça quer unto, grelo azeite e nabo presunto” ou “À falta de capão (galinha/galo), cebola com pão”, (ainda hoje nas nossas aldeias o povo chama à cebola temperada com sal e vinagre galinha à portuguesa).
Vejamos alguns provérbios que nos falam de alguns produtos agrícolas cultivados pelo homem, bem como do período em que devem ou não ser plantados ou colhidos:
- Laranja de Janeiro é tão boa como a carne de carneiro.
- Se queres ser bom ervilheiro, semeia no crescente de Janeiro.
- Aveia de Fevereiro, enche o celeiro.
- Quando não chove em Fevereiro; nem bom centeio nem bom lameiro.
- O grão, em Março, nem na terra nem no saco.
- Em Maio, comem-se cerejas ao borralho.
- Maio frio, Junho quente, bom pão, vinho valente.
- Em Julho ceifo o trigo e o debulho, e com o vento soprando vou limpando.
- Em Agosto, todo o fruto tem o seu gosto.
- Em Agosto deve o milho ferver no carolo.
- Em dia de S. Lourenço, vai à vinha e enche o lenço.
- Pelo São Martinho, mata o teu porquinho e semeia o teu cebolinho.
- Alho e vinho puro levam a porto seguro
- Chuva em Agosto: açafrão, mel e mosto
- Setembro: mês dos figos e cara de poucos amigos
- Em Outubro, sê prudente: guarda pão e semente.
- Não se compram nabos em sacos
- A abóbora e o nabo, ao fim de três dias enganaram o diabo
- Melão e casamento são coisas de acertamento.
- Com melão, vinho de tostão
Pratos tradicionais das Beiras
Deixemos um pouco de lado a literatura oral relacionada com a gastronomia e partamos em busca de alguns pratos caraterísticos da nossa Beira.
Os pratos que mais caraterizam a Beira são:
- o cabrito assado,
- a carne de assuã (ossos da parte do lombo do porco com carne, que são salgados)
- a feijoada com enchidos e hortaliça,
- o rancho à moda da Beira,
- o caldo de castanhas, (a castanha substituiu durante muitos anos a batata nas zonas onde esta não abundava)
- o chouriço de boche,
- as trutas,
- o caldo verde,
- as papas de milho (ou relão – milho moído grosseiramente) com carne de vinha de alhos, sardinha ou míscaro,
- o sarrabulho (sangue de porco, fígado, lombo e condimentos vários),
- a vitela assada de Lafões,
- o pato assado,
- o arroz de carqueja,
- o arroz de feijão,
- o feijão frade,
- a batata a murro com bacalhau,
- as migas (com feijão frade, broa e couve ralada),
- a broa de milho,
- a sardinha assada com batata à racha e pimentos,
- as favas estufadas com enchidos,
- o peixinho da horta (vagem verde de feijão, passada por farinha e ovo, frita), ...
Se nos alargarmos no espaço geográfico da vasta área que são as Beiras, encontramos ainda uma riqueza maior da deliciosa gastronomia que os nossos antepassados nos legaram. Referimos:
- as trutas de escabeche,
- a lampreia,
- a caldeirada de peixe,
- a bola de sardinha, de carne de vinha de alhos, de cebola,...
- a sopa de nabos com castanhas,
- a chanfana,
- os torresmos,
- o arroz de espigos,...
Reconhecemos que a gastronomia tradicional é hoje uma das nossas grandes marcas turísticas. É também na gastronomia tradicional portuguesa que muitos emigrantes se inspiram e apoiam fazendo sucesso nos países onde residem.
À mesa, recheada com paladares regionais podemos encontrar a fraternidade e o convívio salutar que uma boa companhia e uma mesa farta, regada com um bom vinho proporcionam, pois, “Festa sem comedoria, é como gaita que não assobia”.
Maria Odete Madeira
(Toronto, 2015)